Na noite anterior ao Dia da Consciência Negra, um crime brutal: em Porto Alegre, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, foi brutalmente assassinado pelos seguranças (um deles seria PM) de um mercado da rede Carrefour. Nada mais emblemático em um país onde o racismo faz parte da estrutura da própria sociedade; sendo, por isso, muitas vezes, inconsciente.
Obviamente, a maioria da população brasileira [branca e não-branca (aqui incluem-se os chamados pardos, e os negros) chocou-se com o ocorrido; entretanto, a maneira de cada um interpretar o fato está atrelada ao seu lugar social definido pela cor da pele. Em outras palavras, para compreender, de maneira mais abrangente, como o racismo se manifesta no dia-a-dia (e nesse caso, em específico), é preciso ser negro; é preciso, ao menos, buscar enxergar o caso a partir da ótica do negro.
Eu sou negro; vivo há dez anos em Porto Alegre; também já fui ‘escoltado’ enquanto fazia compras em mercados, enquanto passeava em um shopping; já senti a diferença de tratamento em restaurantes e cafeterias quando estava com amigos brancos, e quando estava entre amigos negros. Neusa Santos nos diz o porquê disso: no livro ‘Tornar-se negro’, fala que "a sociedade escravista, ao transformar o negro em escravo (...) demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado (...) o paralelismo entre cor negra e posição social inferior”.
Chegando ao Brasil como mercadoria, sem nome e sem família, o negro não era uma pessoa, não possuía direitos sociais, não possuía dignidade. Séculos depois, inegavelmente, avanços aconteceram, e os negros estão, aparentemente, integrados à sociedade. “Mas por que ‘aparentemente’, se os negros agora podem trabalhar, constituir família, são cidadãos reconhecidos, possuem inclusive cotas para ‘facilitar’ sua integração social?” - alguém perguntará. “Ora, - eu respondo -, porque a demarcação estabelecida pela sociedade escravista continua no inconsciente social, nos diferentes tratamentos que, à margem e mesmo dentro da lei, os negros recebem em interações diárias. Tratamentos esses que vão do racismo velado de uma abordagem diferente até a violência extrema que resulta em morte. Em todos os casos, a vida do negro, junto da sua própria condição de ser humano, é vista como passível de menosprezo.
Estruturado na sociedade, o racismo adquire essa manifestação passiva. Isto é, ele não se resume apenas a sua exteriorização através de uma ofensa, mas de um conjunto de condutas já tão enraizadas na sociedade que, muitas vezes, não são sequer percebidas. Vejamos: é possível até que os seguranças do Carrefour tenham amigos negros, tenham avós negra, que não se vejam como racistas; e mais, que pensem isso com profunda honestidade. Porém, o racismo estrutural os ensina que, quando um negro entra em um estabelecimento, ele é suspeito. O motivo? Puro e simples: sua negritude.
Djamila Ribeiro, em ‘Pequeno Manual Antiracista’, fala de uma pesquisa feita em 1995 na qual 89% dos brasileiros afirmavam existir racismo no Brasil, mas que 90% não se identificava como racista. Ora, isso demonstra como a população consegue ver o racismo que é expressado no âmbito externo, mas é incapaz de perceber aquele que está dentro nos posicionamentos inconscientes.
João Alberto foi mais uma vítima de um sistema que enxerga negros como inferiores. A última informação que tenho é que seus assassinos já foram presos. Mas o verdadeiro culpado, o sistema que ensina que negros são propensos a serem bandidos e que são inferiores aos brancos, este continua a todo vapor, inclusive buscando outras justificativas para a atitude dos seguranças (João teria histórico de agressão contra mulheres, passagem pela polícia, teria xingado os atendentes). Entretanto, essas narrativas ignoram que um branco na mesma situação dificilmente teria sido morto (basta pegar os indicadores de violência policial, os dados de morte violenta: a grande maioria das vítimas nesses casos são negros). O branco teria sido levado preso, mantendo parte de sua dignidade. O racismo estrutural ensina que a vida de uma pessoa branca deve ser considerada, e que a vida de uma pessoa negra não tem valor.