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Olhar sobre os que estão embaixo

Publicada em 12/12/2021 às 10:23h

Lucas Leal - Psicólogo


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Olhar sobre os que estão embaixo

Há oito anos, no dia 27 de janeiro de 2013, eu, um ainda inexperiente psicólogo (só fui conquistar o primeiro emprego formal em psicologia em abril daquele mesmo ano), era acordado pela manhã pela minha mãe aos prantos, perguntando se eu estava bem e me notificando que uma boate na cidade de Santa Maria, onde eu morava na época, havia incendiado. Ligo a televisão e começo a me inteirar das constantes informações que cada vez mais inundavam a tela da TV. Naquele momento, o tamanho do desastre já era estimado e também eu começava a tomar conta do quão próximo de mim aquilo acontecera. Uma angústia tomou conta de mim e somente muito tempo depois fui perceber que também fui uma das tantas vítimas indiretas do que acontecera. 

 

Após falar com algumas pessoas, soube que muitos profissionais, principalmente os da área da saúde, estavam se voluntariando para ajudar no CDM, mais conhecido como “Farrezão”, para onde os corpos das vítimas estavam sendo mandados. Após hesitar um pouco, fui para o centro desportivo que se situava apenas a umas quadras da minha casa. Chegando lá, percebi que centenas ou talvez milhares de pessoas se encontravam na frente do CDM. O dia era muito quente. Consegui entrar usando a minha carteira do CRP e me dirigi a um salão onde familiares recebiam ordens e instruções para fazer o reconhecimento dos corpos que eram trazidos por caminhões refrigeradores ao salão do lado. Psicólogos se voluntariavam para acompanhar as famílias, eu não consegui. Não lembro se por conta própria, ou por sugestão de alguém, resolvi abordar pessoas que se encontravam em desespero e dizer que eu era psicólogo e estava lá pra ajudar. Parecia pouco, mas escutá-los, por mais que brevemente, era o auxílio que eu podia dar no momento. 

 

Na parte da tarde, após andar um pouco pelo Farrezão, descobri que estava sendo formado um centro de atendimento psicológico aos parentes e sobreviventes da tragédia, no local onde funcionava um Caps AD perto dali, na Rua Borges de Medeiros. Fui até lá e encontrei uma pequena equipe que começava a se organizar. Nas próximas duas, ou talvez três semanas, me uni a essa equipe que ia crescendo e chegou a contar com o apoio da Cruz Vermelha. Atendi parentes, sobreviventes, profissionais que prestaram atendimento direto às vítimas, assim como também aos bombeiros. E aqui ressalto, pessoas que quase não conheciam nenhuma vítima, mas se sentiram atingidas pela proximidade da tragédia. 

 

 

 

 

Um acontecimento nesta escala, e com a brutalidade que teve, não atinge somente as vítimas e parentes. Há uma grande teia de pessoas que são afetadas pelo fato trágico. Parentes, amigos, colegas, vizinhos e profissionais são apenas alguns deles. Então, assim começamos a medir com mais proximidade a grande dimensão do incidente. Importante ressaltar que nós todos precisamos de uma proteção simbólica que nos dê a sensação de segurança, sempre um tanto ilusória, mas necessária. O trabalho do psicólogo ao se deparar com estas pessoas que se encontram perdidas ou “sem chão” é resgatar alguns pontos de apoio dessa pessoa para que ela consiga se agarrar e seguir a vida. 

 

Esta semana foram julgados os (apenas) quatro réus indiciados pelo Ministério Público. Os mais poderosos ficaram de fora, claro. 

 

Fiz aqui um relato pessoal e profissional para o fim de chegar a uma proximidade do tamanho da tragédia e a importância que os laços simbólicos têm no psiquismo humano. A ideia de que existe uma justiça que zela pelo bem de todos é um dos mais importantes componentes deste simbólico sobre o qual nos levantamos todos os dias. Que a justiça seja feita e que alguém seja responsabilizado é profundamente importante, e muito mais para os pais e parentes das vítimas, pois é assim que teremos a sensação de viver em um mundo civilizado e com a mínima compaixão por aqueles que não estão no topo.

 

 










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