O Brasil é negro, o negro é brasileiro. Eis duas afirmações que devemos reforçar, especialmente, nesta semana em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, realizado em 20 de novembro. Exaltando Zumbi dos Palmares, a data teve origem em solo gaúcho, na cidade de Porto Alegre em 1971. Na ocasião, o único para ressaltar o povo negro era o 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura, em referência à assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel.
A ação da Princesa foi extremamente importante para garantir um futuro mais nobre ao negro brasileiro, que apenas em 1888 passou a ser reconhecido como ser humano. Isso aconteceu há 133 anos, significando que a grande maioria dos bisavós dos negros vivos hoje foram escravos, ex-escravos ou descendentes diretos da escravidão. Assim, a menção a Zumbi dos Palmares na origem do 20 de novembro é a busca por uma data que, ao reverenciar a negritude, reverencie também o negro, a pessoa negra.
Nosso país é fruto de uma mistura de raças, povos, crenças e culturas. Povos de diversas etnias foram responsáveis por construir nossa pátria. E a negritude se faz notar em diversas áreas de nossa cultura: na música, na língua, na história, na religião. Em artigo de título “O negro na história e na construção do gauchismo”, Luiz Cláudio Knierim apresenta o lugar do negro na formação do Rio Grande do Sul. Entre outros aspectos, lista que o gênero musical Milonga, tão conhecido e apreciado em pagos gaúchos, surgiu através de negros e mestiços pobres das periferias de Buenos Aires. Pergunta: quantos de nós sabíamos dessa informação?
A própria palavra “milonga”, diz Luiz Cláudio, é de origem diretamente africana, como também são as palavras “fandango”, “mogango”, “canjica”, “bombear” e “chambão”. Aqui, já se percebe a influência do negro da música ao jogo de truco, passando pela culinária e pelo hábito do chimarrão. O Rio Grande do Sul é negro, e o negro é gaúcho. Mas por que essas origens são pouco divulgadas?
O doutor em Teoria Geral do Direito, Sílvio Luiz de Almeida, em seu livro Racismo Estrutural, defende a tese de que o racismo brasileiro não é algo individual, perpetuado por pessoas ou grupos isolados, mas um elemento estruturador de nossa sociedade, a qual se desenvolveu nessa dinâmica onde negros eram silenciados, tratados como reles mercadoria e valorizados apenas pela força de trabalho.
A cultura, os sentimentos, os desejos (aquilo tudo que constitui a humanidade) do povo negro foram esquecidos. Suas crenças, vestimentas, arranjos de cabelo foram marginalizados. Em outras palavras, o apagamento ou a indiferença a qualquer manifestação da negritude é parte da maneira “normal” da sociedade brasileira funcionar. E conseguir compreender esse nível onde o racismo se instala no dia a dia brasileiro é essencial caso queiramos extinguir o preconceito racial.
A história nos mostra que, após a libertação dos escravos, poucas iniciativas de inserção do negro na sociedade foram desenvolvidas. Assim, o negro recém-livre, mas analfabeto e incapaz de integrar-se na teia social de outra forma que não através do trabalho braçal, foi buscando agrupar-se em comunidades negras. No caso das escravas que faziam serviços na casa grande, essas puderam trabalhar oferecendo serviços domésticos e também fazendo e vendendo alimentos típicos.
Uma dessas ex-escravas, conforme conta o historiador Joel Paviotti, era Tia Ciata, a dona da casa onde o samba (outra palavra negra) surgiu. Vinda da Bahia para o Rio de Janeiro após a Lei Áurea, Ciata sobrevivia vendendo comidas típicas da Bahia em uma localidade onde predominavam moradores negros. No local, os negros expressavam sua cultura e religião, dançando capoeira, realizando rituais de candomblé e, claro, fazendo sambas de roda.
Entretanto, com o passar do tempo, esse passatempo dos negros passou a ser reconhecido como vadiagem, e foi criminalizado. A solução foi levar a festa para um local fechado. Tia Ciata disponibilizou seu barraco para a negritude expressar sua cultura. Ainda alvo de reprimendas, foi necessário que o presidente da época, Wenceslau Brás, intervisse para que o samba pudesse assim se estabelecer livremente. Em resumo: o samba, enquanto manifestação da cultura negra, foi criminalizado e alvo de perseguição. Apenas quando recebeu o apoio de outros setores é que conseguiu a liberdade e então seguiu para os salões da alta sociedade carioca.
Hoje em dia, o samba, assim como as palavras de origem negra no vocabulário gaúcho, são patrimônios nacionais e motivo de orgulho para todos nós brasileiros. Se, por um lado, o racismo está enraizado em nossa estrutura social através da história, enquanto indivíduos, saibamos reconhecer e valorizar o negro em nossa sociedade. O Brasil é negro, o negro é brasileiro.
“sou a bombacha de santo,
sou o churrasco de Ogum.
Entre os filhos desta terra
naturalmente sou um.
Sou o trabalho e a luta,
suor e sangue de quem
nas entranhas desta terra
nutre raízes também.”
Trecho do poema “Sou”, de Oliveira Silveira, poeta gaúcho e um dos idealizadores do Dia Nacional da Consciência Negra.