SANTA MARIA
A crescente preocupação com o meio ambiente tem levado governos, órgãos multilaterais e multinacionais a planejar uma revolução na economia mundial, na qual os combustíveis fósseis seriam progressivamente eliminados das cadeias mundiais de consumo. Nessa perspectiva, os veículos movidos a petróleo estariam com os dias contados, enquanto que o carro elétrico é o veículo no qual os ambientalistas depositam as esperanças de um mundo com menos poluição. Porém, desde meados de 2020, a indústria automotiva voltou a apostar em pesquisas com um outro combustível ecologicamente correto. Trata-se do elemento químico mais abundante no universo: o hidrogênio. Na UFSM, um projeto realizado com recursos do Programa Rota 2030 está pesquisando como tirar maior vantagem dessa tecnologia e, principalmente, como resolver os problemas que um motor de combustão interna apresenta quando movido a hidrogênio.
Esse projeto intitula-se “Desenvolvimento de motor automotivo movido a biohidrogênio para o mercado brasileiro”. É realizado pelo Grupo de Pesquisa em Motores, Combustíveis e Emissões (GPMot) da UFSM, contando com a coordenação da professora Nina Paula Gonçalves Salau, do Departamento de Engenharia Química, e com o professor Thompson Diórdinis Metzka Lanzanova, do Departamento de Engenharia Mecânica, como coordenador associado. O projeto ganhou financiamento de aproximadamente R$ 1 milhão do Programa Rota 2030, após ser aprovado em chamada pública lançada pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) – fundação de apoio vinculada à Universidade Federal de Minas Gerais. Para a administração dos recursos, o projeto tem também parceria com a Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faurgs).
Sucessor do Inovar-Auto, encerrado em 2017, o Programa Rota 2030 – Mobilidade e Logística é uma iniciativa do Governo Federal que tem como objetivo “apoiar o desenvolvimento tecnológico, a competitividade, a inovação, a segurança veicular, a proteção ao meio ambiente, a eficiência energética e a qualidade de automóveis, de caminhões, de ônibus, de chassis com motor e de autopeças”, de acordo com o artigo 7º da Lei 13.755/2018, que instituiu o programa. Entre outras vantagens, o programa concede benefício tributário a empresas do setor automotivo (montadoras, importadores de veículos e fabricantes de autopeças) que realizarem investimento em pesquisa e desenvolvimento no país.
Dessa forma, o programa proporciona que universidades e outros institutos de pesquisa nacionais concorram a financiamento para realizar pesquisas em conjunto com gigantes mundiais do setor automotivo. No projeto em questão, a pesquisa na UFSM conta com o apoio da Marelli (fabricante de autopeças que resultou da fusão da empresa italiana Magneti Marelli com a japonesa Calsonic Kansei) e da TCA/Horiba (subsidiária de sistemas de testes automotivos da Horiba, fabricante japonesa de instrumentos de precisão para medição e análise).
Biohidrogênio – Apesar de o hidrogênio ser um elemento tão abundante, é necessário que a sua forma molecular (H2) – ou seja, quando não participa de outros compostos químicos – seja obtida por meios sintéticos quando a sua finalidade é o uso industrial ou laboratorial. As dificuldades de produção, armazenamento e distribuição do hidrogênio estão, aliás, entre os maiores obstáculos para a viabilidade de um sistema de transporte de larga escala movido a hidrogênio. Atualmente, estima-se que cerca de três quartos do hidrogênio sintético produzido no mundo todo seja oriundo das indústrias de amônia e metanol e de refinarias de petróleo, a partir de um processo conhecido como reforma a vapor. Nesse processo, o hidrogênio é obtido por meio da reação do metano (contido no gás natural) com a água em alta pressão e temperatura.
Esse hidrogênio produzido através da queima de combustíveis fósseis, com a liberação simultânea de grandes quantidades de monóxido (CO) e dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, foi apelidado de “hidrogênio cinza”. Do ponto de vista ambiental, existem ainda diversas classificações do hidrogênio sintético, das quais o hidrogênio “azul” e o “verde” são as mais representativas. O primeiro também é obtido pela queima de combustíveis fósseis, com a diferença de que o carbono emitido no processo é capturado e armazenado. O segundo é o hidrogênio produzido em cadeias de abastecimento de baixo carbono, a partir de energias renováveis (como energia eólica, solar e biomassa), em processos como a eletrólise da água e a separação termoquímica. O “hidrogênio verde” também é conhecido como “biohidrogênio”.
Motor a hidrogênio – Um veículo movido a hidrogênio não é uma ideia nem um pouco nova. Ela remonta, no mínimo, ao ano de 1807, quando o inventor franco-suíço François Isaac de Rivaz patenteou a criação de um motor de combustão interna a hidrogênio. No ano seguinte, ele adaptou esse motor a um primitivo antecessor do automóvel.
Atualmente, existem basicamente dois tipos de carros movidos a hidrogênio: o já mencionado veículo com motor de combustão interna a hidrogênio – hydrogen internal combustion engine vehicle (Hicev) – e o veículo elétrico a célula de hidrogênio – fuel cell electric vehicle (Fcev). Este é um tipo de carro elétrico cuja bateria, em vez de ser recarregada na tomada (como ocorre nos carros elétricos convencionais), é abastecida pela eletricidade produzida através de uma reação química entre o hidrogênio comprimido e o oxigênio captado diretamente do ar em torno.
Nos dois tipos de carro, o que sai do cano de descarga é vapor d’água. Porém, veículos Hicev, além da água, podem também emitir óxidos de nitrogênio (NOx) nocivos à saúde e ao meio ambiente, e que devem ser captados pelo sistema de tratamento de gases de exaustão (do qual o catalisador faz parte). Isso ocorre porque a queima de hidrogênio pode gerar temperaturas bastante elevadas na câmara de combustão, o que potencializa a geração de níveis consideráveis desses óxidos (por meio da reação do nitrogênio e oxigênio presentes no ar).
Do ponto de vista mercadológico, entretanto, ambas as tecnologias de veículos a hidrogênio (Hicev e Fcev) ainda engatinham em termos de vendas nos países do primeiro mundo. A falta de uma ampla cadeia de suprimento de hidrogênio acaba desencorajando eventuais compradores. E esses veículos ainda têm muito a evoluir quanto a diversos aspectos que envolvem a compra de um automóvel, como preço, manutenção, eficiência energética e segurança, entre outros.
Pesquisa – Como o projeto da UFSM tem em vista o mercado brasileiro, decidiu-se que a pesquisa teria como foco o motor de combustão interna a hidrogênio. Além disso, a matéria-prima para a pesquisa é de mais fácil aquisição, visto que com o hidrogênio é possível (dependendo de adaptações) ligar e manter em funcionamento um motor originalmente movido a gasolina, diesel ou álcool. Isso acontece porque, independentemente do combustível, o princípio de um motor de combustão é o mesmo. No caso, o hidrogênio queima dentro de um cilindro, e a consequente liberação de energia movimenta o pistão.
De acordo com o professor Thompson Lanzanova, outro inconveniente do veículo elétrico do tipo Fcev é que ele precisa de um hidrogênio com alto grau de pureza, que pode chegar a até 99,999%. Diversamente, um motor de combustão interna não exige um hidrogênio puro para funcionar. Visando inclusive a diminuir as emissões de NOx, o GPMot vai testar no Laboratório de Motores (Labmot) da UFSM o quanto a queima “pobre” de hidrogênio (ou seja, de combustível H2 misturado a uma grande quantidade de ar) na câmara de combustão pode diminuir a temperatura de queima do combustível, mas sem afetar de forma considerável a sua potência, buscando-se ainda aumento de eficiência. Outra forma pesquisada de baixar a temperatura de combustão – e, por conseguinte, de reduzir as emissões de NOx – é a injeção da água resultante da própria queima do hidrogênio.
O GPMot vai também investigar soluções para outros problemas recorrentes em motores de combustão interna a hidrogênio (devido à alta reatividade desse combustível), como o knock e o backfire. O primeiro consiste em uma detonação que ocorre quando a combustão no interior do cilindro resulta da ignição espontânea da mistura ar/combustível, e não da chama formada pela vela de ignição; a explosão provocada pela autoignição resulta em uma onda de choque que aumenta consideravelmente a pressão no interior do cilindro, podendo causar a quebra do motor. Quanto ao backfire, trata-se de uma combustão que migra de um ponto quente do cilindro para o sistema de admissão do motor, podendo ocasionar a explosão do coletor de admissão e outras quebras de componentes.
Testes desse tipo, entre outros, serão realizados no Labmot em um motor monocilíndrico modelo Ricardo Proteus doado pela Brunel University (da Inglaterra), o qual tem como finalidade específica a realização de testes e pesquisas em laboratório. Posteriormente, os modelos de calibragem obtidos nos ensaios feitos com o motor monocilíndrico serão aplicados às configurações de um motor multicilíndrico veicular. Por sua vez, as empresas parceiras, Marelli e TCA/Horiba, serão responsáveis pelo fornecimento de peças, equipamentos e assistência técnica durante os três anos previstos para duração do projeto. Para armazenar o hidrogênio necessário para o projeto, também está prevista a construção de uma câmara de gases do lado de fora do Labmot.
Afora a melhoria das instalações e equipamentos do laboratório, o projeto trará, por fim, a qualificação dos alunos e professores envolvidos com a pesquisa. Está prevista inclusive a elaboração, com fomento do Programa Rota 2030, de três dissertações de mestrado por alunos envolvidos no projeto (dois da Pós-Graduação em Engenharia Mecânica e um da Pós-Graduação em Engenharia Química), além da concessão de bolsas de iniciação científica para alunos de graduação.
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